28.10.06

Freiria


Consigo percorrer aquela casa e lembrar-me dela ao pormenor...

Chego ao portão e bato à porta...
Alguém aparece à janela para ver quem é...
A porta abre-se e entro num páteo de granito onde uma laranjeira de laranjas enormes e azedas enche grande parte do espaço. Disseram-me que essa árvore foi plantada pelo meu avô, uma laranjeira enxertada de limoeiro, para que todas as manhãs numa determinada altura do ano as comesse... diziam que fazia bem comer laranjas azedas. Chego ao outro lado do páteo e tenho três opções... Virar à direita para subir as escadas e entrar na casa principal, dirigir-me ao canto do páteo e entrar num corredor de arcadas que me leva a um segundo páteo, ou ir em frente e abrir a porta de um anexo que é provavelmente a parte mais antiga da casa.
Nesse anexo poucas vezes entrei... Lembro-me de entrar nele quando já não existiam mobílias, depois de o meu avô falecer. Tinha o tecto todo pintado sob madeira... coisa antiga dizem... mas todo o anexo era em si muito escuro, muito pesado, muito triste... Saio do anexo que não me traz quaisquer recordações... Volto ao páteo, onde com nove anos jogava futebol com o meu primo de quatro – a porta do anexo era uma baliza, o portão da casa era outra... a minha baliza era sempre a porta do anexo (a mais pequena) – e lembro-me de os meus avós nos olharem da janela do seu quarto que se encontrava na casa principal por cima do anexo. Começo a subir as escadas de granito que me levam para a entrada da casa. “Se é Deus que trazes contigo nesta casa tens abrigo” diz um painel que se encontra no início da escadaria com degraus estreitos e altos que estranhamente nunca me fizeram cair...
Chego à casa, entro na sala de visitas cujo tecto é abobadado e lembro-me do piano, da mesa de centro, dos mapples... lembro-me das pessoas que visitavam os meus avós... se não fossem família raramente ultrapassavam essa divisão... A casa em si, sempre foi muito confusa... De uma divisão passava-se para outra, atrás de uma porta havia uma escada em caracol que me levava para os quartos do segundo piso e ao sotão...
A sala de estar, e não das visitas, era pequena e tinha poucas finalidades... lá víamos televisão, jogávamos às cartas e os primos muito mais velhos que eu e tios bebiam o seu whisky e fumavam um cigarro... Já no final de vida da minha avó, e quando o meu avô já não estava presente, nos fins-de-semana em que eu era a única criança da casa, jogava crapot com ela, tentava-lhe fazer fisioterapia à mão afectada pela trombose, acompanhava-a na eucaristia dominical vista na TV e abria a porta ao padre que lhe ía dar a comunhão.
A divisão onde todos convivíamos era a sala de jantar. Chegávamos a ser vinte e seis à mesa! Família grande... Local priveligiado para Ceia de Natal, encabeçado por uma lareira que na noite de consoada se inundava de presentes. Todas as crianças cantavam, lia-se uma ou duas passagens do Novo Testamento e depois... a euforia! Foi com cinco anos que descobri que o Pai Natal era a minha prima mais velha... Não fiquei triste, porque muito embora os colegas de escola dissessem que quem dava os presentes era o Pai Natal, sempre pensei que era o menino jesus que os oferecia...
A sala de jantar dava para o quarto grande dos meus avós, para o quarto dos residentes (qualquer familiar que habitasse permanentemente a casa por estar na universidade da terra), para a escadaria exterior da casa e para um hall.
Casa confusa...
O hall tinha um relógio alto, um telefone, e dava para a Sala de Estar, Sala das visitas, para a porta de acesso às escadas em caracol que me levava ao andar superior e para a Cozinha e copa de inverno. Na cozinha descia outra escadaria, também ela em granito com degraus estreitos e altos, que me levava à cozinha de verão – pouco ou raramente utilizada na minha época –, à sala de jantar de verão e à porta de acesso do segundo páteo... Que medo tinha eu dessas escadas... Aliás, não era das escadas, era de tudo... Descia-as a correr, subia-as de três em três degraus e sempre a olhar para o chão... Não sei se era das sombras – no alto da parede do fundo das escadas existia uma janela redonda em vitral com forma de uma rosácea -, se era das estórias que me contavam, as quais nem me lembro, sobre a sala de estar de verão... sempre muito escura, não sei... Mas sempre tive medo...
Fui uma vez aos páteos à noite e nunca mais repeti a façanha.
O páteo da entrada era o que menos receava, o corredor desse páteo para o segundo – para onde dava a cozinha de verão – fazia-me confusão, principalmente por causa das arcadas, das imensas portas de divisões pouco utilizadas – casa da costura, dispensa, escritório de verão, casa de passar a ferro, sala de estudo e casa de banho de apoio – que me faziam imaginar algum ser qualquer a saltar lá de dentro. Desse segundo páteo para o terceiro páteo... nem pensar... Era o páteo do poço, das muitas àrvores, da casa do carvão e de mais uma casa que nunca percebi a finalidade... O páteo do poço... Se as estórias que me contaram eram mentira, enganaram todas as crianças desta família muito bem. Nunca nenhum de nós se chegou perto do poço por pensarmos que poderia aparecer um fantasma de um frade a dizer “Vai de recto” e a fazer o sinal da cruz.
Enfim, páteos dos horrores à noite, páteos das melhores brincadeiras de sempre de dia. Percorro a casa em memórias e qualquer coisa me trás boas recordações... Até as nódoas negras, as discussões, a neura de não ter ninguém para brincar nos fins-de-semana em que os meus primos não iam, até os medos me trazem saudade...

Normalmente diz-se que não se devem visitar sitios dos quais guardamos memórias felizes, para que as nossas lembranças se mantenham intocáveis.
Visitei a casa dos meus avós há pouco tempo, pedi ao novo dono para a fotografar, enviei as fotos à minha família, expliquei-lhes as alterações e melhorias feitas pelo novo dono, mostrei-me feliz por ver que a grande maioria das alterações era bem conseguida, elogiei o facto de a casa estar tão bem cuidada, comentei uma alteração que ao principio me chocou e depois me cativou... a mudança do chão do segundo páteo de granito para calçada portuguesa...

Só posso dizer que voltei feliz e com uma doce saudade dos doces momentos que lá passei.

Imagem: skywalker

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