28.3.09

Imagina uma viagem de avião


A simpatia no acolhimento quando entramos num Boeing
(como a receber-nos num meio que não é nosso)
A procura do nosso lugar
(como a procurar o nosso caminho)
A desilusão por ficarmos junto à janela, mas por cima da asa
(a primeira desilusão por não nos ser permitido ver um pouco do nosso caminho)
O encaixar a bagagem de mão no compartimento mesmo em cima
(a tentativa de na organização encontrarmos a nossa pequena segurança)
Sentados, sem vista do caminho, revistas e jornais enfiadas no bolso do banco
(a necessidade de distracção, leva-nos ao conhecimento imposto e por vezes irreal, a definição exacta do termo distracção)
Sentados a observar pelo canto do olho a arrumação dos passageiros tardios
(a sensação de cumplicidade com pessoas diferentes que por algum motivo, se calhar até parecido, partilham o mesmo caminho)
A espera pela organização da tripulação
(porque há sempre alguém que nos guia, apoia, aconchega e nos satisfaz as nossas necessidades básicas ao longo de uma viagem)
A apresentação em vários idiomas do piloto do avião
(porque É sempre o mesmo que nos guia, e nós temos várias religiões, crenças e interpretações)
A breve formação exageradamente gesticulada dos cuidados e regras de voo
(tópicos de livros seculares que muito resumidos se tornam aceites por todos, com adequação à máquina de voo. Só nos levantamos e apertamos o cinto quando quem nos guia o permitir)
O arranque dos motores…
(o - É agora…)
O endireitar a cadeira e a ligeira tensão do avançar do avião cada vez mais rápido
(a fé no guia, a esperança do destino, o receio da partida, a dificuldade de desprender do chão – a nossa segurança)
A turbulência do avião a largar o chão
(a adrenalina e em breves segundos a plena ausência de pensamentos que normalmente nos parecem dramáticos)
A desaceleração e a sensação do avião a planar ao mesmo tempo que recolhe as rodas
(a confirmação de confiança no Guia, o começo do relaxamento, a volta dos pensamentos não dramáticos – ficaram em terra -, dos pensamentos de curtir este tempo, esta viagem, sonhando com a previsão de momentos no local de destino)
O sinal sonoro de desapertar cintos, o começo do rodopio para as minúsculas casas de banho
(após o aperto, as primeiras escolhas humanas são a satisfação das suas necessidades fisiológicas)
Ao mesmo tempo que o sinal de desapertar os cintos soa, as cortinas da primeira classe fecham-se
(quando aperta o cerco todos somos iguais, assim que a crise desaparece começam as diferenças)
O vizinho do lado não atento à breve formação pergunta – Quando servem a refeição?
(a ‘outra’ necessidade acorda e mesmo prevendo que o snack ou refeição não sejam nada por demais, a necessidade de aconchego físico aumentam a ansiedade)
Começa o baixar das improvisadas mesas e aguardando pacientemente a nossa vez, entregam-nos com um sorriso a bandeja do conforto
(o sorriso, a oferta acalmam qualquer momento)
Abrimos efusivamente as embalagens, o mistério, na busca do conteúdo
(se esperarmos demais de algo que é apenas um aconchego, um conforto, facilmente ficaremos desiludidos)
Segunda volta – Tea? Coffee?
(mais um sorriso, mais uma oferta, a conclusão do aconchego surpresa)
Começa a recolha de tabuleiros e o reclinar de cadeiras
(começamos a ver que mesmo partilhando o mesmo caminho e destino, existem diferenças, mesmo fora da primeira classe)
O vizinho do lado dorme, a criança do banco da frente fala, o casal atrás namora, mais à frente alguém lê um jornal, mais ao lado duas senhoras conversam sem parar
(todos encontram diferentes formas de percorrem um mesmo caminho)
Poços de Ar!!!
(voltamos todos a ser iguais, a ter os mesmo receios, podemos mesmo chegar a dar a mão e partilhar a nossa força com completos desconhecidos)
A calma, o alivio de sentir o avião novamente a planar
(o ufa! O breve comentário para o lado da experiência partilhada, o largar da mão, e lentamente, o desapegar da união, recomeçando as diferenças)
O comunicado do comandante do avião a informar que estamos quase a chegar ao destino, a informação da temperatura
(esquecimento e começo de desmame de quem connosco fez a caminhada. Alguns tiram peças de roupa se o destino está mais quente)
O sinal sonoro de apertar o cinto, o início da descida
(Novamente a fé no guia, a esperança do destino, o receio da chegada, a vontade de chegar ao chão, que nos lembramos ser a nossa segurança. Mas desta vez, o chão também nos assusta)
A turbulência do avião a descer, as rodas a tocarem com força no chão, a desaceleração e a travagem
(a adrenalina, a plena ausência de pensamentos mundanos, a alegria pelo voto de confiança no Guia, o começo da sensação de Casa, mesmo num destino completamente desconhecido)
As filas de gente e malas que incomodam com as portas do avião ainda fechadas, que se enfiam no corredor mesmo vendo não existir espaço
(A espera misturada com ansiedade, no final do caminho, é como bicho esfaimado. Salve-se quem puder… Todos os acontecimentos passados parecem irrelevantes, todos se esquecem da lição, companheirismo, partilha de força e energia, e breve cumplicidade)
A primeira classe sai, como o nome indica, primeiro
(mais uma vez, na acalmia as diferenças surgem, e os normalmente menos ansiosos com o destino, por ser banal, corriqueiro, fácil saiem primeiro. Não é esta a sua grande viagem… Normalmente até trazem pouca bagagem)
Chegados aos tapetes rolantes, procuramos a bagagem
(mais uma vez a espera, desta vez daquilo que dizemos ser nosso e que depois da turbulência, das ansiedades, de toda a necessidade de adaptação, depois do primeiro conforto ao sentirmos terra – que reconhecemos -, o conforto em sentirmos que com a nossa bagagem nos sentimos nós, seja lá de que jeito for… mas é o jeito que reconhecemos)
Perder a bagagem?
(não é drama… depende do apego que temos às coisas ou a nós)
A chegada à porta pública de chegadas do aeroporto, meio mundo concentra-se
(todos temos sempre alguém à nossa espera, mesmo que não o saibamos, mesmo que não estejam naquele preciso lugar, mas num outro. Ficamos enternecidos com reencontros carinhosos de outros, sorrimos com a alegria e efusividade de outros. Nem que a nossa recepção seja o sorriso de felicidade da recepção daqueles que partilharam connosco um nosso caminho).


Conclusão:
Todos temos o mesmo destino
Todos o percorremos de forma diferente.
Podemos fazê-lo sozinhos ou acompanhados.
Mas quem não o faz de coração aberto, quem não o sente, quem não o valoriza e não aprende, terá de repeti-lo tantas vezes até que o consiga sentir em pleno.


Pic: josteih

2 comentários:

CdaPluma disse...

Excelente! Adorei!

E inspirou-me!

Beijo

dom noronha disse...

engraçado,
cheguei hoje de viagem e vinha pensando tudo isso, embora não com tanta poesia e candura...calejado de viagens, já não sinto tantas emoções, mas senti-as novamente ao ler o texto.
agora, esse negócio de mal parando o avião ficarem todos de pé no corredor com ares de ânsia... isso sempre me soou como burrice. não é mais prático esperar calmamente assentado que se abram as portas e que as pessoas que estão mais próximas delas saiam???