19.2.07

Mãos da memória

E lembro-me de chegar a casa, a minha mãe sentada no mapple do seu quarto, a poisar o auscultador do telefone e a dizer "Merda!" (a primeira e única vez que vi calão a sair da boca da minha mãe).
- Que foi mãe? - perguntei-lhe eu enquanto lhe via uma lágrima a cair pelo rosto.
- A tua avó morreu, a minha mãe...
Não me lembro de mais nada até ao segundo telefonema... Com um sorriso e um suspiro pousou novamente o telefone e disse - Falso alarme! A tua avó não morreu.
Passaram-se dias, ou será que foram semanas, ou até mesmo meses? Vinha eu do colégio, passei pela papelaria ao fim da minha rua e com um ar de quem estava a fazer o que não deve, comprei um saco cheia de gomas. Saí da papelaria, comi uma goma à socapa e ao virar da esquina dei de caras com o meu pai. "Apanhada com a boca na botija!" - pensei eu e tremi... O meu pai? Nem se apercebeu... deu-me a mão como se tivesse apenas cinco anos e disse-me com doçura:
- Vem, temos de ir para Évora, a avó morreu e a tua mãe está muito triste.
Mais uma vez apaguei tudo o resto... tenho uma vaga ideia da casa dos meus avós cheia de gente, mas já não sei se estou a misturar os momentos com os da partida do meu avô. Só me recordo de observar ao longe na nave principal da igreja o caixão da minha avó, ver a prima Aurélia a levantar o véu que lhe cobria a face e num relance ver as mãos paradas da minha avó, as mãos que eu agarrava poucos meses antes e que docemente beliscava para ver o sangue a passar por aquelas veias espessas. Lembro-me desse sorriso... a olhar para mim com doçura enquanto brincava com as suas mãos. Tudo o resto? Apaguei... Com catorze anos já me defendia...


Pic: Hands by Darac

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